O Luxo da Raiva
Artigo de Dave Lowry
Tradução e adaptação para Português de Artur Pinto
De acordo com a forma de pensar de muitos dos espadachins do antigo Japão, existiam
quarto “doenças” básicas às quais o artista marcial poderia sucumbir. As enfermidades
eram medo, duvida, preocupação e surpresa. Muitos dos elementos espirituais e da
psicologia de treino no budo moderno, como então, tem sido dirigida a ultrapassar
ou prevenir estas doenças. A esta lista de quatro seria sábio adicionar mais uma
aflição que é tão mortal e insidiosa quanto as outras quarto. A essa lista adicionaríamos
a Raiva.
“ Um homem é como o Aço”, assim diz o provérbio Japonês (e o concelho aplicasse igualmente
às mulheres, apressamo-nos a acrescentar); “ Uma Vez que perca a temperança é inútil.”
O meu Sensei tinha uma forma diferente, um pouco mais directa de expressar o mesmo
sentimento. Ele chamou-me à tenção para isso uma tarde enquanto me estava a ensinar
num campo pelado abaixo de um velho cemitério perto da sua casa. Estavamos a praticar
com espadas de Madeira (Boken). Naquela altura do meu treino com ele estava a experimentar
um fenómeno que qualquer serio Budoka já encontrou num ponto ou noutro da sua vida.
Estava a esquecer o Kata. Tinha atingido um ponto na minha aprendizagem onde partes
dos katas que me tinham sido ensinados estavam a ficar misturados na minha mente.
Os movimentos de diferentes katas apareciam juntos. Ainda mais enfurecedor, durante
a execução de uma sequência de um kata particular de repente tinha “uma branca”.
Alguns deste movimentos tinha andado a fazer regularmente durante os últimos dois
ou três anos, e subitamente, para minha tremenda frustração, tinham desaparecido,
apagados do meu cérebro. O meu corpo parava como se os meus nervos e músculos tivessem
entrado em curto-circuito. Era enlouquecedor. Era especialmente difícil de suportar
para alguém como eu que um nível de frustração pateticamente baixo. Era ainda pior
porque quando me “engasgava”, Sensei que estava a agir como meu oponente no kata,
simplesmente ficava ali, sem qualquer expressão, à espera que eu executasse a técnica
que eu nem que a minha vida estivesse em causa seria capaz de produzir.
"Shimatta zo!" Finalmente disparei em desespero com a minha propria estupidez.
A resposta do Sensei foi tão rápida que, estava terminada, muito antes de eu me ter
apercebido que tinha começado, em menos tempo que o que me demorou a completar a
interjeição. Ele bateu a sua espada de madeira contra a minha e virou-a completamente,
usando a força ponderosa das suas ancas, numa acção tirou imediatamente a arma das
minhas mãos. A minha espada rodopiou no ar umas quantas vezes até finalmente embater
no solo. Simultaneamente, fiquei com a sensação que os meus pulsos tinham acabado
de ser arrancados dos meus braços.
“Raiva é um Luxo,” disse ele baixinho. “Um que tu não podes pagar”. "
Raiva como um artigo de luxo. É uma forma curiosa de pensar sobre esse sentimento,
não é? Mas, tal como a maioria dos concelhos que vários dos meus Sensei me deram
depois de terem captado a minha atenção de formas igualmente dolorosas, é algo sobre
o qual vale a pena pensar.
A Raiva é um luxo porque nos permite focar toda a nossa atenção numa única coisa:
nós mesmos. Lembra a ultima vez que tropeçou e magou o mindinho ou quando perdeu
as chaves ou quis pisar o acelerador até ao chão porque o carro não arrancava? Nestes
momentos nada mais no mundo existia na sua mente para além do seu problema imediato.
Raiva, nesse sentido, é muito parecido com a a sua mente ir de férias. Quando vai
de férias, dá-se ao luxo de sair para nadar na piscina ou fazer uma caminhada, ler
um livro estendido no sofá todo o dia se quiser. A Raiva pode não ser tão agradável
(nem tão pouco inclui os benefícios de umas férias), apesar de poucos poderem negar
que é uma forma satisfatória de “libertar pressão” quando estamos mesmo irritados,
tal como eu fiz com o meu impropério no campo pelado quando não me conseguia lembrar
do kata.
Quando perdi o meu temperamento fui indulgente. Foquei-me no meu problema, esquecendo
completamente o meu oponente. No campo de batalha, o local onde aqueles katas eram
intencionados de serem aplicados, esse tipo de indulgência, poderia custar a minha
vida. Como Budoka, o preço que teria de pagar pelo luxo de ficar furioso é demasiado
caro.
Por vezes poderemos escolher acreditar que a raiva nos dá “estaleca”. Se o objectivo
for suficientemente simples, talvez seja o caso. Se tenho de derrubar uma porta,
ponham-me suficientemente furioso e eu talvez seja capaz de o fazer. Mas as capacidades
de combate físicas de um artista marcial não são tão simples. Tem de estar atento
à distância, timing, as acções do oponente, a possibilidade de encontrar mais do
que um adversário, e por ai fora. Em situações tão complexas, a raiva não tem negocio.
Outra crença sobre a raiva - e vemos isto com frequência em filmes e outras formas
dramáticas de entretenimento é que pode motivar-nos a sermos corajosos quando em
situações de grande stress. Uma vez mais, em algumas instâncias limitadas, isto pode
ser verdade. Mas depender da raiva como fonte de energia pode ter consequências sérias
com o passar do tempo. A raiva envolve as glândulas adrenais do corpo. Esta pode
não ser a explicação mais científica, mas as suprarenais segregam adrenalina que
é lançada na nossa corrente sanguínea em situações em momentos de grande perigo ou
stress. O que se segue é um processo complexo, mas o resultado é que a pressão sanguínea
aumenta bem como a frequência cardíaca e respiração - todas estas funções entram
num modo acelerado de funcionamento. É como se o corpo fosse um pequeno carro familiar,
um que não tem trabalhado ultimamente, que foi ligado subitamente acelerado a fundo
e conduzido o mais rápido possível, tudo numa questão de segundos. Se for uma emergência
e tivermos de ir a algum lado depressa é bom termos um transporte que nos leve lá.
Se fizer isso com o seu carro regularmente no entanto, não irá demorar muito até
que o motor e a transmissão estejam em sarilhos.
Aqueles cujas profissões envolvem encontras perigosos e violentos - soldados, policia
e bombeiros por exemplo, cedo aprendem as consequências negativas de depender da
adrenalina gerada pela raiva para enfrentar essas situações. O corpo consegue lidar
com erupções de Raiva ocasionais, mas quando a raiva se torna uma resposta condicionada
ao stress, os cirurgiões cardíacos tem de começar a lavar as mãos pois vão ter trabalho.
Como espécie, não evoluímos, quimicamente ou emocionalmente, para permanecer saudáveis
sujeitos a este tipo de stress. Não mais do que um carro utilitário familiar foi
desenhado para ser puxado ao máximo e conduzido em máxima velocidade com o motor
frio. (Os chineses, por acaso, notaram à muito tempo os problemas que encontramos
quando estamos zangados de forma demasiado frequente. Textos médicos taoistas com
alguns séculos passados referem-se a isto como um desequilíbrio de Chi “fogo”, ou
ki como seria usado em Japonês, e muitas formas de Tai Chi Chuan ou Chi kung praticam
formas de libertar o corpo do excesso de energia.)
A Raiva gasta energia indiscriminadamente, normalmente em altura em que é necessário
preservarmos energia e usar essa energia com o nosso máximo beneficio. Ela foca a
concentração de forma muito estreita em momentos que mais precisamos de ser mais
cognitivos sobre o que se passa à nossa volta. Rouba-nos o nosso auto-controle precisamente
no momento em que mais precisamos de estar em controle de nós mesmos. Seria idealista
esperar que com o treino nós conseguíssemos eliminar a raiva que por vezes está dentro
de nós. No meu caso, eu não tenho grande esperança de que isso aconteça. Mas se o
nosso treino de budo não pode eliminar a nossa raiva, ele pode ensinar-nos a reconhecer
sobre o que realmente é a nossa raiva, e a ver que mais vezes do que o contrário
é uma emoção que não nos podemos dar ao luxo de ter.